sábado, 22 de dezembro de 2007

Eu, manequim de loja.


[Tentativa de conto de horror]





Estamos todas amontoadas naquele lugar insalubre."Todas " é modo de falar, porque há "homens", "mulheres, " meninos", "meninas " e até "bebês". Eu sou "mulher", mas também é em sentido figurado. Tenho seios e curvas perfeitas, estrutura longilínea. Qualquer pessoa me atribuiria o sexo feminino, um belo corpo. Os humanos, entretanto nos permitem apenas a aparência, o invólucro superficial. Não temos substância, miolo. Sem cérebro, sem tripas.Sem genitália, sem sexo. Somos carcaças.

Faltava tudo naquele cubículo. Sem ventilação, sem luz solar. Sobrava poeira, papéis pelo chão. Móveis quebrados, cadeiras sem pernas.O ar empesteado, cheirava a urina de rato e mofo secular. Para mim, algo como aquilo que os humanos chamam de navios negreiros, em seus livros de história. Ou os presídios, onde eles trancafiam sua própria escória. O lixo. traficantes, assassinos em série, estupradores. "Ratos'", como aqueles fedidos que sujavam nossos pés, roíam nossos "corpos", guinchavam. Na mais profunda escuridão, desconhecendo dia ou noite. O horror de estar condenados, reduzidas a ratos e "ratos". O horror.

Estávamos encarceradas, mas na porta não estava o letreiro indicando " presídio', "cadeia pública" ou coisa assim. Nenhum desses nomes que provocam uma imediata sensação de desconforto ou medo. Havia apenas uma placa, um pedaço de papel indicando "depósito". Um nome comum, daqueles que passam despercebidos. Um nome simples.

Éramos um sem número. A maioria em bom estado de conservação, quase novos (duramos anos ...). Alguns sem um ou outro braço , ou perna. Serviam para fazer reparos. Havia ainda pernas e braços espalhados. Corpos remendados com fita adesiva ou outro recurso grosseiro. Cabeças sem corpos, corpos pela metade. Braços jogados num canto. Em prateleiras, enfileiradas, havia o que há de mais terrível: bustos sem pernas ou cabeças, bebês sem cabeça. " Homens tanquinho" para vender camisetas, "Gostosonas" para vestir biquínis e calcinhas. Sem pernas, sem coxas, sem braços, sem cabeças.

Eu estava naquele lugar a poucos dias. Acabara de sair da fábrica. Nova, mas nunca inocente. Nunca somos crianças, ainda que alguns tenhamos aparência de bebês. Sorrisos angelicais no rosto. Somos produzidas em série, filas indianas de "iguais. Somos fabricados com ódio, há descaso conosco.

Como !? você olha para nós com indiferença? Vê nossos sorrisos plastificados, nos vê felizes. Um comercial de margarina. Ou "Brasil, país de todos". Você acredita?



Você vai feliz às compras, satisfazer sonhos de consumo e vida plena. Você mal nos enxerga, hipnotizada de cobiça e vaidade. Você está num mundo de fantasias, nós somos a mais amarga realidade. Nós trazemos desprezo, ridículo. Nós te ameaçamos, enquanto assistimos tua satisfação. Você veste o que mandamos, com sensações de luxúria e romance na cabeça. Nós trazemos desencontro e desilusão aos teus sonhos cor- de - rosa. Destruímos o teu amor que poderia ser eterno. O desconforto e o cansaço que carregas às costas somos nós que te damos. O mal-estar que te consome as entranhas, vêm de nós. Imóveis, estáticas, espalhamos a infelicidade para tudo que é humano. Somos como a morte. Endurecemos, onde houver leveza e paz. Congelamos o sol. Levamos fraqueza e desânimo. E quando houver fartura, seremos a miséria. Estamos às ordens.


A porta foi aberta logo cedo. O cheiro de morte que saia, não pareceu atingir as narinas dos dois rapazes que entraram. Procuravam uma de nós, escolheram a mim. Era uma grande loja de departamentos, eles dois pobres coitados.Peões. Faria com que tivessem um dia muito pior.


Fui carregada. Passei por eletrônicos, brinquedos, utensílios domésticos, doces e biscoitos. Seção infantil, roupas femininas. Cheguei.



Seguraram meu "corpo", enquanto a Mulher que dava ordens decidia onde me colocar. Esfregaram uma flanela molhada em meu "rosto", repetiram em meu corpo. Eu fedia, nada podia esconder meu mal cheiro. Passavam um líquido perfumado, ficaram satisfeitos. Inútil. Eu era o esgoto.


A Mulher que dava ordens testava as opções de roupas para eu usar. Resolveu me colocar na vitrine. "Estilo festa ", decidiu.


Experimentou , resolveu que eu usaria um vestido preto, sapatos altos, bracelete e colares no "pescoço". Satisfeita, ajustou um cinto em minha cintura, pendurou uma bolsa em meu ombro. Carregaram-me para a vitrine. Um cubo de vidro, com uma porta em frente. Até que chegou a hora de abrirem a loja. Pontualmente. Ser vista.



A vitrine era ansiosamente esperada por nós. Um lugar nobre, mas por motivos diferentes daqueles que você imagina.



Estávamos ali para chamar atenção, atrair a curiosidade dos passantes, chamar clientes. Eu era a parte principal de um cenário quase teatral, montado com cuidado e planejamento. Talvez permaneça semanas, até meses naquele lugar. Quando levantaram a porta barulhenta, uma coisa tomou conta de mim, indefinida. Diria que "um frio na barriga", se tivesse entranhas... Somos ocas, esqueletos revestidos. Senti o Poder.

Para nós, era bom estar na vitrine, quase um sonho, pode ser vista por tantas pessoa. Receber olhares demorados, criteriosos. Ser avaliada. Ou um olhar simples e rápido, displicente. Tanta gente passando.

Tem a mulher que decide-se rápido a entrar e comprar um igual, as meninas arrogantes que cochicham achando "ridículo". A moça que acha lindo, quer comprar e é humilhada pelo preço proibitivo, exorbitante. A outra, gastando o seu mês de salário e maus-tratos do patrão. Tudo para ter um pedaço de pano do qual vai se cansar em poucos dias.

Diante de nós, tanta fantasia. Nos alimentávamos dessas ilusões, impulsos consumistas, satisfações passageiras, felicidades superficiais. Aquele turbilhão de emoções e sensações que captamos e amplificamos. Uma antena, uma sorvedouro. Prenchemos tudo que colocam em nós com todo o desprezo que temos pelos humanos.

Nas fibras dos tecidos, na liga dos metais, no brilho dos adereços. Em tudo, em cada centímetro, demonstramos o que os humanos são para nós. Lixo putrefato.Estúpidos narcisistas. Raça evoluída?

Transferimos ódio. Ficamos grudadas em cada peça, como tatuagem. Tecidos carregados de medo, blusas transparentes reluzindo breu. Calças com detalhes de angústia e fios de sangue. O que não sai com agua e sabão, nós colocamos em sua vida. Cada peça traz desencanto a vida de quem a escolher.


Basta tocar uma de nós, consultar o preço na etiqueta, verificar a composição ou a textura do tecido. Basta um olhar mais demorado, deixar-se dominar pelas fantasias. Fazer contas, querer comprar. Basta isso. Imagine levar exatamente o que estou usando?

Eu usava uma peça única e certa vez a cliente insistiu e levou tudo o que estava vestindo. Dos pés à cabeça, podemos dizer. E eu estava com aquela roupas a semanas...o que terá acontecido a ela?

Sei que tudo está a venda na loja.É para isso que existem. Mas o que vestimos, se vocês soubessem nunca levariam para casa. Era para ser queimado.


Você enxerga em nós apenas um cabide, um suporte? Mesmo? Você enxerga "glamour", sofisticação em nós? Vê o luxo ? Isso é para aquela outras, as de passarela. Giseles, Naomis. Nosso mundo é outro.
Somos a beleza ao avesso.

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